Vestuário enfrenta tempos «terríveis» no Myanmar

Pedidos interrompidos, desemprego, protestos e falta de esperança pintam os tempos de confusão vividos pela indústria de vestuário do Myanmar, que sofreu um duplo revés, a pandemia e o golpe de 1 de fevereiro. Com a migração dos investidores chineses e das retalhistas para outros mercados, a incerteza paira sobre o futuro do sector no país.

[©Reuters/Soe Zeya Tun]

Apenas dois anos depois de ter aberto a fábrica de vestuário em Myanmar, Li Dongliang está prestes a fechar portas e a demitir os 800 trabalhadores que ainda continuam no ativo.

Os negócios estavam já a sofrer dificuldades com o impacto da pandemia e os protestos contra o golpe de 1 de fevereiro vieram piorar a situação, pois a fábrica foi incendiada durante a onda de sentimentos anti-China.

Este acontecimento retrata a situação perigosa que este sector fundamental para a economia do Myanmar enfrenta, tendo em conta que é responsável por um terço das exportações do país e emprega 700 mil trabalhadores com rendimentos baixos, de acordo com os dados da ONU.

«Não teremos escolha a não ser desistir de Myanmar se não houver novos pedidos nos próximos meses», afirma Li Dongliang à Reuters, revelando que tem operado com cerca de 20% da capacidade total e que os pedidos feitos antes do golpe lhe permitiram sobreviver, mas já dispensou 400 funcionários.

Como as encomendas deixaram de chegar, Li Dongliang e muitos dos colegas da indústria de vestuário estão a ponderar mudar para outros mercados de baixo custo como a China, o Camboja ou o Vietname. As marcas de moda, nomeadamente a Primark e a H&M, já pararam de negociar com a nação do sudeste asiático.

Segundo a Myanmar Garment Manufacturers Association, os cidadãos chineses financiam quase um terço das 600 fábricas de vestuário de Myanmar, sendo, por isso, o maior grupo de investidores.

Pelo menos mais duas fábricas de vestuário em Myanmar com financiamento chinês, que empregam três mil trabalhadores, decidiram fechar, avança Khin May Htway, sócio-gerente do MyanWei Consulting Group, que aconselha investidores chineses no país sem, no entanto, revelar a identidade das empresas.

Na última década, o investimento estrangeiro aumento em Myanmar, impulsionado pelas reformas económicas, o fim das sanções ocidentais e acordos comerciais que ajudaram a estabelecer a indústria como um centro de produção.

As exportações de vestuário de Myanmar cresceram de menos de mil milhões de dólares em 2011, cerca de 10% das exportações, para mais de 6,5 mil milhões de dólares (5,44 mil milhões de euros) em 2019, o que representa 30% das exportações, conforme sugerem as informações da United Nations International Trade Statistics Database.

Depois desta evolução, o país foi impactado pela pandemia, que deixou o mundo em recessão e afetou a procura do consumidor, o que se traduziu numa perda de dezenas de milhares de postos de trabalho nas fábricas de vestuário de Myanmar e noutras regiões da Ásia.

Embate duplo

A somar ao panorama de perdas, deu-se o golpe que gerou protestos e transformou as ruas em campos de batalha, com muitos dos trabalhadores da indústria de vestuário a juntarem-se aos protestos ou impossibilitados de trabalhar, o que se refletiu na mão de obra. A agitação vivida também bloqueou o sistema bancário e dificultou a entrada e saída de mercadorias do país, uma problemática destacada pelos proprietários das fábricas.

[©Reuters]
Com a dimensão internacional do golpe, as marcas de moda da Europa e dos EUA garantiram, num comunicado em resposta à situação, que iriam proteger os empregos e honrar os compromissos com o país. A realidade, contudo, contradiz esse compromisso, com muitas retalhistas a paralisar encomendas, como a H&M, Primark, Next e Benetton. A Next vai dividir os pedidos destinados ao Myanmar pelo Bangladesh, Camboja e China, enquanto a Benetton vai transferir negócios para a China. A H&M e a Primark não quiseram tecer comentários à Reuters sobre a redistribuição.

Pobreza extrema

No Vietname, Ravi Chunilal, proprietário de uma confeção, revelou à Reuters que está a começar a receber pedidos de clientes europeus que recorriam anteriormente ao Myanmar.

«Eles não queriam abandonar o Myanmar, mas está a ser-lhes imposto», admite Peter McAllister da Ethical Trade Initiative, uma organização dos direitos de trabalho, que reconhece que que será muito difícil para a indústria de vestuário do país recuperar-se depois da saída dos investidores chineses.

O sentimento anti-China aumentou desde o golpe no Myanmar, com os oponentes à investida a notarem o mutismo de Pequim, comparado com a condenação ocidental. Foi neste cenário que várias fábricas financiadas pela China, incluindo a de Li Dongliang, foram incendiadas por agressores não identificados durante um protesto.

Os grupos de direitos humanos têm mostrado repetidamente preocupação sobre a exploração no sector de vestuário do Myanmar, onde a maior parte das trabalhadoras ganha apenas 3,40 dólares por dia, o valor mais baixo da região. Mas proporcionou uma fuga à pobreza para muitas, com a migração de trabalhadores das zonas rurais para as fábricas e o consequente envio de dinheiro para as famílias que lá ficaram.

Khin Maung Aye, diretor-geral da fábrica de vestuário Lat War, que emprega 3.500 funcionários, acredita que o sector vai colapsar se os militares não conseguirem que o governo seja eleito democraticamente. Como consequência, os níveis de pobreza serão «terríveis» e os pedidos previstos para o final do mês podem não chegar, alerta o empresário.

[©Reuters/Shwe Paw Mya Tin]
Os EUA, que impuseram sanções direcionadas para os militares de Myanmar, suspenderam as negociações comerciais com o país no final de março e anunciaram estar a rever a elegibilidade para o Sistema Geral de Preferências, que reduz as tarifas e oferece outros benefícios comerciais para os países em desenvolvimento. «Isso pode profetizar uma futura rutura para o sector de vestuário do Myanmar», antecipa Steve Lamar, presidente da American Apparel & Footwear Association que representa mais de mil marcas de moda.

Para evitar essa rutura, alguns sindicatos dos trabalhadores da indústria de vestuário pediram que a comunidade internacional impusesse sanções mais severas para pressionar os militares. «Aceito ordens de mudança. Os trabalhadores enfrentarão dificuldades e privações porque não haverá empregos. Por outro lado, simplesmente não aceitamos o regime militar», confessa Myo Myo Aye, fundador do Solidarity Trade Union of Myanmar.