Com presença em mais de 40 países, quase 100 lojas próprias em Portugal, Espanha, França e Irlanda, 25 lojas franchisadas, nomeadamente em África e no Médio Oriente, mais de 1.200 parceiros multimarca e vendas, em 2022, de 200 milhões de euros, a Salsa está a acompanhar a evolução das exigências europeias no âmbito do dever de diligência, do relatório de sustentabilidade e da responsabilidade alargada do produtor – onde tem experiência no mercado francês – e prepara-se para testar um protótipo de passaporte digital do produto já na primavera-verão do próximo ano.
Como é que as questões da sustentabilidade se manifestam na estratégia da Salsa?
No caso da Salsa, como temos uma matriz industrial, sempre procurámos muito a eficiência e sempre trabalhámos muito o tema da sustentabilidade, não lhe chamávamos era sustentabilidade. Por exemplo, quando formulámos aquilo que é para já um dos nossos maiores sucessos, o Betterwash, que é o nosso programa de produção de denim mais eficiente em termos de consumo de água, acabámos por descobrir que muito já estava feito e isso tem a ver com essa orientação industrial e de melhoria contínua que existe nas pessoas. O que é que, de facto, mudou muito? A visibilidade e o escrutínio. Aí foi necessário arranjar uma maneira de mostrar a áreas mais díspares dentro da organização e também para fora o quão importante isso era. Há cerca de três anos, afinámos um pouco o nosso posicionamento, definimos quatro pilares principais e um deles é o que chamámos de responsabilidade pelas pessoas e pelo planeta. Mais do que sustentabilidade, gostamos muito da palavra responsabilidade. É bastante mais abrangente e acho que também permite que um maior número de pessoas dentro da empresa consiga perceber que é algo para o qual pode aportar.
Na parte industrial, anunciaram um investimento de sete milhões na tinturaria e lavandaria. Em que é que será aplicado esse investimento e que resultados esperam do mesmo?
Temos três dimensões principais dentro desse investimento e todas elas tocam, de algum modo, o tema da sustentabilidade e da responsabilidade. Uma delas passa pela renovação da infraestrutura, do parque industrial, e foi uma das obras que completámos agora antes do verão, era preciso para dotar também de maior capacidade a parte industrial. Depois, há um processo, e esse sim foi o primeiro a arrancar, de substituição progressiva de tudo aquilo que é o nosso parque de máquinas, quer na tinturaria, quer na lavandaria. Essa substituição traz poupanças assinaláveis em termos do consumo de água, de consumos energéticos, menor utilização de químicos. Portanto, essa é provavelmente a maneira como conseguiremos mais impacto. E temos uma terceira valência que tem a ver com os consumos acessórios – investimentos que temos feito, e que vamos continuar a fazer, para trabalhar os próprios circuitos e a redução do consumo de água e também dos consumos energéticos, quer pela redução dos consumos nas máquinas, quer pela instalação de um parque fotovoltaico que ainda não está executado, mas que será executado. Estamos a falar de uma infraestrutura que nos deve servir provavelmente para cerca de 40% de autoconsumo. Essas três dimensões acabam, todas elas, por tocar um bocadinho essa matriz. É um projeto que deverá ser executado até 2025 ou 2026.
Que importância tem a produção própria na marca?
Para nós é um ativo com um valor extraordinário. Acabamos uma percentagem muito elevada do nosso denim dentro de portas, o que nos permite ter uma resiliência em termos de cadeia muito mais elevada do que alguns dos nossos parceiros e continuar a ter uma investigação e uma capacidade de reação a tendências muito elevada. Temos também uma pequena linha de confeção a que chamamos de atelier, com corte e costureiras, onde fazemos tudo aquilo que são as amostras, as pequenas cápsulas e as reparações do programa Infinity, que até agora são feitas 100% cá. Fazemos aqui também, por exemplo, as personalizações. Temos disponível online e nas lojas a possibilidade de personalizar o denim, as calças, os casacos, e as peças vêm para aqui para serem executadas, têm essa garantia de qualidade.
O programa Infinity foi lançado no ano passado. Que balanço faz do mesmo?
Super positivo e bastante surpreendente. Para nós, o melhor fim de vida possível para uma peça é que ela continue a ser utilizada e como tínhamos todas as capacidades, quer em termos da avaliação da peça pelas nossas equipas de loja, quer da possibilidade de reparar aqui, optámos por criar um programa muito encarreirado para a questão da reparação. E surpreendeu-nos em duas dimensões. A percentagem de pessoas que opta por reparar versus entregar é bastante mais elevada do que aquilo que estávamos à espera. 80%, ou seja, quatro em cada cinco pessoas, prefere entregar para reparar e não para fim de vida. Isto mostra também que existe, de facto, uma relação emocional especial com algumas das nossas peças. Nesse sentido, somos uma marca especial. E, depois, temos duas maneiras que as pessoas podem utilizar para pagar o serviço: através das estrelas do nosso programa de fidelização ou pagando diretamente com dinheiro. Mais uma vez, fomos surpreendidos, porque também cerca de 80% das pessoas prefere pagar em vez de usar as suas estrelas. Isto, para nós, inspira-nos a fazer mais ainda, porque significa que as pessoas estão dispostas a reconhecer o custo e o esforço que está na reparação de uma peça e acho que nos dá um sinal de que pode haver mais potencial e que começa a haver já um número relativamente interessante de pessoas que se preocupa com estas dimensões.
O que é que é feito com os restantes 20% de peças entregues pelos consumidores?
Temos vários fins de vida possíveis. Há fins mais tradicionais que passam apenas pela aplicação em usos alternativos, como sempre aconteceu. Aquilo em que estamos a tentar avançar agora, e devemos ter novidades sobre isso até ao final do ano, é conseguir um parceiro que consiga assegurar uma reciclagem a 100% desse material. Essa é a peça que nos falta. É garantir que, de facto, aquilo que é recolhido pode ser reciclado de forma integral e transformado numa peça nova.
A União Europeia tem em desenvolvimento um pacote legislativo onde se inclui, entre outras coisas, o dever de diligência. Como é que lidam com essas exigências e como é que se refletem nos vossos fornecedores?
Duas dimensões muito simples. Temos uma componente mais de exigência, se quisermos, mais um standard de mercado, que sempre fizemos, e que tem muito a ver com os nossos procedimentos internos e códigos de conduta. Aqui estamos a falar de temas sociais, ambientais, de fim de cadeia que os nossos fornecedores têm de cumprir. Nós garantimos esse cumprimento com auditorias anuais. Há aqui um pedido também bastante grande aos fornecedores para que procurem obter certificações. Essa é claramente uma dimensão que nos ajuda neste processo e que os ajuda também a eles. Agora, a parte que tem crescido mais são o que eu chamo de necessidades que são, de facto, coisas que esse dever de escrutínio veio trazer e que puxam muito mais por uma relação colaborativa do que por exigir comprovativos ao fornecedor, como uma necessidade de partilha de informação muito maior do que no passado – temos uma relação de muito maior proximidade com estes fornecedores na medida em que precisamos que eles disponibilizem informação nas nossas plataformas para podermos também facilitar este processo de avaliação e de rastreablilidade dos produtos. O Betterwash foi desenhado com o mindset de funcionar aqui, mas funcionar também com os meus fornecedores. O conhecimento foi partilhado e eles replicam lá. Depois é um loop, porque eles próprios acabam por utilizar isto noutras técnicas que nós, se calhar, não temos cá e que podemos depois trazer, e eles podem acabar por utilizar isso até para outras marcas, o que, para nós, não tem qualquer problema. É um efeito secundário de melhoria que estamos a partilhar com o mundo. Por isso é que friso muito que vamos sempre trabalhar com poucos fornecedores e com relações duradouras porque isto demora tempo.
Isso poderá também facilitar no caso da obrigatoriedade de, em breve, os produtos terem um passaporte digital?
O passaporte vai ser um grande desafio, vai provavelmente tocar todas as dimensões da cadeia de uma vez só, que era uma coisa que nós, quando isto começou, não estaríamos à espera – esperávamos um processo muito mais gradual. Como é que fazemos para estar preparados para tudo o que é legislação europeia que há de sair? Começa muito pelo processo de acompanhamento. Criámos uma estrutura interna de grupos de trabalho multidisciplinares que acompanham temas específicos. É impossível, hoje em dia, que seja apenas uma pessoa dentro da organização a acompanhar isto. Tem de ser a organização como um todo a fazê-lo e funciona muito bem. Fazemos ainda um acompanhamento um bocadinho mais institucional através do grupo Sonae e junto de órgãos de representação do sector como, por exemplo, o EuroCommerce, para acompanhar o processo de legislação que está a ser feito a nível europeu e há muitas consultas públicas nas quais gostamos também de dar o nosso apport. Há também um trabalho muito importante de colaboração com as forças do sector, muita coisa que vai sair quer da colaboração, por exemplo, com fornecedores, mas também, por exemplo, por estar envolvido em consórcios como o Be@t, liderado pelo CITEVE. Depois, e sobretudo, vai muito também da mentalidade da própria empresa. Decidimos tentar perceber como é que podíamos dar os instrumentos e a possibilidade às pessoas de trabalharem já como vão ter de trabalhar quando sair essa legislação. Isso é o mais complicado e implica investir em formação e dar-lhes projetos concretos para que possam experimentar hoje aquilo que vai ser a forma como vão trabalhar no futuro. Uma delas, por exemplo, pode ser a nossa participação no projeto “The Jeans Redesign” da Fundação Ellen MacArthur, onde estivemos com várias dezenas de parceiros internacionais. Ou, por exemplo, a criação do Infinity. Em relação ao passaporte digital per si, decidimos trabalhar sobre a nossa plataforma interna, que nos permite ter já uma estrutura, se quisermos, de passaporte, dentro do nosso próprio sistema. Temos os nossos fornecedores a trabalhar connosco num teste para um produto da coleção de primavera-verão 2024 que será lançado e será feito todo o rastreamento das unidades desse produto até ao fim. Para nós, é muito interessante poder fazer já esta experiência.
Em relação à responsabilidade alargada do produtor, a Salsa tem já a experiência do mercado francês. Como tem funcionado?
França claramente saiu à frente em tudo o que é estruturação daquilo que vão ser os frameworks de responsabilidade alargada do produtor e julgo que vai ser uma inspiração grande para aquilo que a UE vai acabar por definir. Para nós, também é interessante ser neste mercado, porque é o nosso terceiro maior mercado, é bastante relevante e, por isso, também nos obrigou a levar isto muito a sério. No início, começou numa dimensão puramente punitiva, como uma ecotaxa. A primeira medida que saiu foi, em função dos volumes colocados no mercado, paga X. Mas a verdade é que tem evoluído positivamente. Esta ecotaxa passou a ter um deve e um haver e começa a ter instrumentos que equilibram e recompensam aqueles que se esforçam e que trabalham para a melhoria. Ou seja, para não se transformar de repente numa coisa em que os grandes pagam a taxa e os pequenos é que sofrem. Três exemplos daquilo que foi surgindo entretanto e que ajuda a criar uma coisa mais completa: tivemos de submeter um plano de prevenção e eco-design que, no fundo, é um plano em que nos comprometemos a entregar até 2028 uma série de metas que têm a ver com a responsabilidade alargada do produtor, de como é que vamos fazer os nossos produtos, os nossos processos de desenvolvimento e em que temos benefícios por atingir essas metas; a entrada em vigor de uma eco-modulação, se quisermos, das taxas, portanto, marcas que utilizam materiais mais responsáveis, peças mais duráveis, certificações, têm bonificações, o que faz todo o sentido; e, finalmente, o bónus de reparação. O próprio regulador francês compreendeu que – e o nosso Infinity foi exatamente com esse mindset que surgiu – há aqui uma necessidade de incentivar essa reparação e esse prolongamento da vida dos artigos.
Vão beneficiar desse bónus de reparação?
Vamos sempre beneficiar com isso de uma maneira interessante. Ou seja, vamos tentar estar dentro dessa rede [de entidades certificadas para a reparação], mas imaginemos que nem estamos dentro dessa rede. O facto dessa iniciativa existir vai aumentar a consciência das pessoas para utilizar esse tipo de serviços, portanto, o nosso programa localmente vai ter muito mais força, estando ou não na rede.
Há ainda a obrigação das grandes empresas apresentarem o relatório de sustentabilidade já a partir de 2025. É algo que está nas vossas preocupações?
Nós já fazemos parte do relatório de sustentabilidade para o grupo Sonae. O grupo Sonae foi bastante rápido e um pioneiro até na abrangência com que abraçou esse desafio, nomeadamente pelos diferentes pactos que foi assinando no domínio do plástico, da floresta, das condições sociais de trabalho, das populações mais seniores em termos de enquadramento na força de trabalho. Esses compromissos obrigam a muito disclosure de informação e fazemos essa partilha e essa publicação dentro do relatório Sonae. O próprio grupo tem também o objetivo, já há algum tempo, de ter cada vez mais dívida subjacente a critérios ESG [governança ambiental, social e corporativa] e, portanto, isso já é uma realidade dentro do grupo. Há uma parcela do nosso financiamento que cumpre atualmente esses critérios, sendo que, numa terceira dimensão, os próprios ratings começam também a ter, de maneira frequente, critérios ESG assimilados. Nós vamos com frequência partilhando informações e isso prepara-nos para, quando chegarmos a um momento em que a própria Salsa tenha de publicar de forma separada, é quase tirar esses dados e pôr num relatório à parte.
No ano até agora, como é que as vendas da Salsa se têm comportado?
O ano está a ser bom. Claramente mais positivo na frente internacional do que no mercado doméstico. Diria que é um ano em que também estamos a trazer propostas muito diferentes de produto ao mercado, temos coisas muito interessantes que estão a abrir caminhos de crescimento, mesmo para Portugal e para Espanha, que são os dois mercados em que estamos mais implementados. Na parte da expansão internacional, está tudo a correr conforme o plano. Estamos a abrir vários mercados. Abrimos recentemente presença direta na Irlanda, um mercado onde já estávamos há cerca de quinze anos, onde temos duas lojas próprias, mas deverão ser três até ao final do ano.
É o único mercado que estão a abrir?
Com lojas diretas, sim. Em termos de mercados de abertura, estamos a abrir mais. Temos acordos para entrar na Geórgia e na Arménia e vamos abrir agora na Turquia, com um grande grupo de department stores local, o grupo Boyner. Temos um acordo também para entrar na Grécia que não sei se ainda terá materialização em termos de distribuição este ano ou no início do próximo ano.
E para o outro lado do Atlântico, há planos?
Devemos ter novidades sobre isso nos próximos meses. Tanto os EUA como o Canadá são mercados muito interessantes, onde o produto e as marcas made in Portugal têm reconhecimento – os nossos colegas do têxtil-lar ajudam um bocadinho a criar ainda hoje em dia essa noção. São mercados que, na verdade, são muitos micromercados. Ou seja, os EUA, per si, não significam nada, mas temos, de facto, regiões interessantes para nós. Em princípio, nos objetivos para 2024, já veremos se, ou num ou noutro, conseguimos fazer alguma coisa. Mas tanto os EUA como o Canadá estão no pipeline para a abertura a curto prazo.
Neste momento, tem-se sentido algum arrefecimento económico, nomeadamente em Portugal. Que expectativas é que tem para o resto do ano e para o futuro?
A maneira como olhamos para a Salsa está muito alinhada com a própria Sonae. A Sonae gosta muito de dizer que é uma “long living company” e tem muito a ver com isso. Estando cientes daquilo que são os constrangimentos do curto prazo, temos de pensar mais a longo prazo. No longo prazo, queremos que a Salsa seja claramente uma marca de referência, senão a marca de referência, em denim, no mercado europeu. Temos muitos concorrentes de base americana, mas não há, hoje em dia, muitas marcas europeias com alguma dimensão e nós achamos que podemos ter algo a dizer. Para isso, Portugal vai ser sempre muito importante na equação, Espanha também, mas há muitos mercados na Europa onde não existe uma oferta deste género. Temos muito potencial para ir crescendo aí apesar das condições económicas.
Fala-se muito que Portugal tem uma base industrial muito forte, mas que escasseiam marcas. O que falta?
Temos sempre uma limitação muito grande que tem a ver com a dimensão do nosso mercado doméstico. Ou seja, as marcas quando começam o seu caminho, são sobretudo orientadas a vender no seu mercado doméstico. O nosso mercado doméstico é pequeno. Portanto, por muito que uma marca seja grande em Portugal, continua a ser muito pequena e, com isso, surgem depois grandes limitações quando quer dar o salto para a expansão. A Salsa, e outras marcas, é a demonstração de que é possível, mas não é fácil. É preciso também ter um contexto positivo, ou seja, há momentos melhores e momentos piores para encetar estes processos de crescimento. Acho que, e voltando àquilo que é a agenda europeia, estas novas regulamentações podem abrir oportunidades que não existiram no passado. Ou seja, se pensarmos que a nossa capacidade industrial trabalha num patamar relativamente elevado porque é, e muito bem, o segmento em que se posicionou, a produzir para as melhores marcas mundiais, e que Portugal é reconhecido como uma origem de eleição em termos de capacidade produtiva de qualidade, é muito difícil montar marcas num contexto em que é a fast fashion, a velocidade e a descartabilidade que ganha. Agora, se anteciparmos um contexto de futuro em que o que conta é a durabilidade, a responsabilidade, o valor acrescentado das peças, isso abre um espaço à formação de novas marcas portuguesas que não existia no passado, porque o tabuleiro do jogo vai estar muito mais equilibrado entre quem quer fazer isto com uma matriz de origem mais local, de mais proximidade e de mais responsabilidade e quem, de repente, trabalha apenas volume. Acho que podemos estar na antecâmara de uma nova janela de surgimento de marcas portuguesas.