Olhos postos no Brasil

Com mais de 50% (97 milhões) dos brasileiros a definirem-se como negros ou mestiços, a cultura afro-brasileira está a mudar o rosto do país. Através da aceitação dos seus cabelos naturais e de tudo o que essa atitude implica, do boom de festivais de moda e de um ativismo digital ímpar, os afro-brasileiros estão a vincar a sua pegada em planetas como a moda, a beleza e o design.

Caldeirão cultural

Desde o Campeonato do Mundo, em 2014, até aos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, que o mundo está de olhos postos no Brasil. E, ainda que o país seja há muito uma fonte de inspiração para a moda e design, o movimento cultural afro-brasileiro está a criar uma nova geração de influencers contemporâneos.

A história rica, ainda que tumultuosa, do Brasil soube gerar um país que é um dos mais etnicamente diversos do mundo. A sua cultura caleidoscópica é composta por nativos, europeus, asiáticos e, com o maior peso, por homens e mulheres de ascendência africana.

Os últimos censos, realizados em 2010, revelaram pela primeira vez que o Brasil tem o maior número de pessoas de ascendência africana fora de África. De acordo com os censos, este número «não significa que a população afro-brasileira, de repente, tenha aumentado dramaticamente. Em vez disso, os novos números refletem a mudança de atitudes sobre raça e cor de pele no Brasil».

Porquê agora? Existem inúmeros fatores a contribuir para esta realidade, incluindo o aumento de casamentos inter-raciais, inter-religiosos e transnacionais, a globalização e, é claro, a conectividade digital. Não obstante, o Brasil não é uma utopia multirracial – a discriminação ainda é um problema diário – mas, globalmente, a sociedade está a tornar-se (lentamente) mais inclusiva e a aceitar os afro-brasileiros. Os rendimentos dos trabalhadores afro-brasileiros cresceram 52,6% entre 2003 e 2015 e o Brasil tem atualmente em curso um programa para a sua educação superior.

Moda de futuro

Nos últimos meses, a cultura afro-brasileira tem vindo a trespassar a indústria de moda do Brasil. A modelo Jourdan Dunn apareceu na capa da edição de fevereiro da Vogue Brasil e embora Dunn não seja afro-brasileira, a imagem na capa reflete as atuais influências culturais. Ainda que a edição de fevereiro da Vogue tenha virado as cabeças da indústria, o tema “África Pop” do baile de carnaval da revista foi o verdadeiro responsável pela definição de novos contornos neste território.

A falta de diversidade nas semanas de moda brasileiras, no entanto, continua a ser um tema controverso. Em 2009, os organizadores e designers da São Paulo Fashion Week concordaram com uma quota modelos de cor de 10%, depois dos protestos dos ativistas, resultando num aumento da diversidade entre os modelos da passerelle. Considerada inconstitucional, a quota foi removida em 2010, mas muitos designers brasileiros adotaram a diversidade como uma prioridade. Um passo recente que procurou aumentar a visibilidade para os modelos de ascendência africana ocorreu durante a São Paulo Fashion Week para a primavera-verão 2016. A organização desenvolveu o evento “África, Africans, Moda” com estilistas africanos de moda (Maki Oh, Palesa Mokubung, Jamil Walji) e 25 modelos africanos.

Num país conhecido pelos seus festivais, não surpreende que os festivais de moda afro-brasileira estejam a desfrutar, também, de popularidade. Em Salvador da Bahia, o Afro Fashion Day é um evento de um dia com designers e marcas de moda afro-brasileiras, como Jeferson Ribeiro, Dresscoração e Katuka.

Cabelos em questão

«Muitas mulheres que usam o “black power” estão a aderir à cultura, outras têm uma atitude política, mas há também aquelas que o usam simplesmente porque é elegante», afirmou Danielle Cipriane, fundadora do blogue Crespos e Cachos ao portal de tendências WGSN. No Brasil, afros e outros estilos de cabelo encaracolado ao natural são comumente referidos com “black power” e, de acordo com Cipriane, «a popularidade do “black power” está a começar a desafiar a noção brasileira de que o cabelo liso é lindo».

Em 2015, mais de 3.000 afro-brasileiros participaram do Natural Hair Empowerment March, em Salvador da Bahia, e centenas marcharam na Curl Power Parade durante o Carnaval do Rio de Janeiro. «Estamos a dizer às mulheres que elas podem deixar o seu cabelo ao natural e que podem sentir-se confiantes e bonitas sem negar a sua identidade», sustentou Leila Velez, fundadora da Beleza Natural, uma cadeia de institutos e produtos de beleza especializada em cabelos crespos.

Além dos caracóis naturais, as tranças africanas tradicionais e as rastas estão a regressar ao Brasil. Tudo isto está a afetar, também, as vendas: segundo a Mintel, espera-se que o mercado global de produtos para cabelo crespo alcance os 876 milhões de dólares (aproximadamente 803 milhões de euros) em 2019, devido a fatores que incluem a tendência para as mulheres negras usarem o cabelo ao natural, o que resulta em maiores vendas de shampoos e produtos de styling.

Ativismo digital

Ainda que o ativismo digital não seja necessariamente novo, as reações generalizadas e quase instantâneas no Brasil em relação ao racismo são a prova de uma mudança social em torno da igualdade.

Quando a popular vlogger afro-brasileira Rayza Nicácio publicou um vídeo no YouTube a documentar o regresso à sua cabeleira natural, nunca imaginou o apoio que iria reunir em torno da sua jornada. Até à data, a publicação teve quase um milhão de visualizações e cerca de 3.000 comentários. Nicácio é parte de um movimento mais amplo de ativistas afro-brasileiros que usam as plataformas digitais para promoverem a sua causa.

A campanha “Racismo Virtual, Consequências Reais” foi lançada no Brasil depois de Maju Coutinho, a primeira apresentadora negra de meteorologia em horário nobre, ter sido diversas vezes atacada na página do Facebook da empresa. Em resposta, os ativistas antirracismo utilizaram o geo-tagging para identificar os utilizadores racistas e republicaram os seus comentários em outdoors enormes perto das suas casas. Além disso, a hashtag #WeAreAllMaju dominou as redes sociais.