A Sasia começou, há 70 anos, por reciclar o desperdício de algodão das fiações estabelecidas nas ex-colónias, transformando esses resíduos em fibras que seriam novamente incorporadas em fios. Hoje, a empresa, que emprega 30 pessoas, mantém o mesmo espírito, embora com matérias-primas provenientes de outras geografias e de diferentes unidades produtivas, que depois de passarem pelo processo de reciclagem são incorporadas em artigos para as indústrias da moda, colchoaria, automóvel, horticultura, construção e geotêxteis.
O futuro, acredita o administrador Miguel Silva – que é ainda acompanhado pelo pai e fundador Libório Silva e, desde há um ano, pela filha Mariana Silva –, passará por uma aposta na reciclagem pós-consumo, uma área já contemplada no investimento de 10 milhões de euros que a Sasia tem em curso até 2025 e que trouxe já, para as suas instalações, a primeira desfibradora Jumbo de sete cilindros destinada especialmente à produção de rama com destino à fiação, construída pela Andritz.

Como é que uma empresa especializada em reciclagem nasce em 1952?
Miguel Silva – A empresa foi fundada pelo meu pai com mais dois sócios. Surge em 1952 como reciclagem, na altura para aproveitar o algodão que vinha das nossas antigas colónias – fazíamos a reciclagem do algodão das fiações, o qual era limpo e voltava a ser incorporado nas fiações para fazer fio. Somos um país que não tem algodão, mas tínhamos muito algodão que vinha das colónias. Tínhamos uma grande indústria têxtil em Portugal e muitas fiações, coisa que agora não acontece. Foi assim que a empresa começou e depois foi evoluindo ao longo dos tempos.
Mas quando começa, a Sasia processava apenas o desperdício da fiação?
Miguel Silva – De tudo o que era têxtil. Sempre fizemos, e continuamos a fazer, o aproveitamento de todo o material têxtil. Tudo o que for material têxtil, nós fazemos a sua reciclagem.
Não há nenhuma limitação, mesmo em termos de composição?
Miguel Silva – As composições são estudadas para os diversos mercados. Trabalhamos para muitos mercados distintos, por isso, cada material tem a sua aplicação. Temos que estudar as composições e os materiais dependendo do mercado em que queremos aplicar.
Em 70 anos, o que mudou, incluindo nestes tempos mais recentes com enfoque maior na reciclagem e na economia circular?
Miguel Silva – Mudou a consciência ambiental dos consumidores, que obrigou as grandes marcas a optarem por caminhos diferentes a nível do ambiente, fazendo a sua circularidade, aproveitando os materiais e olhando para a reciclagem com outros olhos, porque, há cinco anos, as marcas não falavam em reciclagem têxtil. Para este tema tem 70 anos, porque já estamos na reciclagem há 70 anos, mas para as marcas e para o grande público começou há relativamente pouco tempo. Recentemente comprámos uma máquina, a primeira fabricada a nível mundial pela Andritz, que tem uma grande capacidade produtiva, dá-nos uma qualidade diferenciada dos demais, tem um menor consumo energético, não gasta água nem usa nenhuns produtos químicos – tem essas vantagens. As novas maquinarias que foram aparecendo ao longo dos últimos anos obrigaram-nos a estudar novos mercados e novas aplicações para os resíduos.
Essa máquina, em particular, faz o quê?
Miguel Silva – A máquina faz o corte, faz a mistura, põe as fibras uniformes e homogéneas – temos uma sala de misturas para as fibras ficarem todas homogéneas e a sua composição sair igual desde o primeiro fardo até ao último. Depois passa por um processo de desfibramento das próprias fibras em si, um processo fino, que vai abrir as fibras para ser possível a sua reciclagem e uma aplicação final.
Em termos de aplicações finais, quais são as mais importantes?
Miguel Silva – Fiação, construção civil, colchoaria, geotêxtil, horticultura, automóvel… Vendemos para empresas completamente distintas umas das outras, sectores completamente diferentes. Temos uma polivalência muito grande e uma defesa, a nível de empresa, porque os mercados nunca estão todos iguais. Por exemplo, neste momento, a indústria automóvel está um bocado em baixo, não por falta de encomendas, mas porque não há componentes eletrónicos. E a nível de fiação, até agora esteve em alta, o que não se prevê que continue, mas outros irão compensar.
Sob que forma entra o material na máquina?
Miguel Silva – O material pode entrar em fios, em trapos, …. Toda a empresa têxtil gera um resíduo e é esse resíduo que aproveitamos. Vem em diversas formas dependendo das empresas onde é produzido. Fazemos uma mistura do artigo que queremos, de composição, de cor, para termos o resultado final para o cliente. Cada mistura que fazemos em cada máquina é estudada para um cliente específico. Não trabalhamos para stock, trabalhamos diretamente a pedido do cliente.
Quantos clientes ativos tem hoje a Sasia?
Miguel Silva – Devemos ter à volta de 100 clientes.
Quais são os principais mercados?
Miguel Silva – O nosso mercado principal é o europeu. Portugal deve representar uns 40%. Espanha é o principal mercado externo, seguido da Alemanha.
Que sectores ocupam o pódio enquanto clientes?
Miguel Silva – A fiação, a indústria automóvel e os geotêxteis.
Como começou o processo de internacionalização da Sasia?
Miguel Silva – O processo foi uma evolução natural ao longo dos tempos. O têxtil começou a expandir-se para outras indústrias que até aí não existiam. Também apareceram novos materiais para reciclar. A empresa foi crescendo e fomos obrigados a procurar novos mercados, nova maquinaria, o que tem sido igualmente uma constante na empresa.
Qual foi o último grande investimento efetuado pela empresa?
Miguel Silva – Temos um investimento em curso de 10 milhões de euros, que começou em 2019 e com um prazo de seis anos para ser concretizado. Neste momento estamos a ser muito solicitados para reciclar os artigos de vestuário pós-consumo, por parte das grandes marcas, mas há certos problemas que apresentam, como o problema dos manipulados, o problema das lavagens, do desgaste da própria fibra, o problema das composições e isso tem de ser muito bem estudado para que, no final, a fibra, depois de reciclada, tenha a aplicação desejada. Por isso, as grandes marcas têm, cada vez mais, de ter cuidado com o eco-design porque é muito importante logo na peça, para estudar a sua possível reciclabilidade. Não podemos falar no pós-consumo e fazer reciclagem no pós-consumo sem termos o cuidado de estudar no início da peça, porque os manipulados são tantos, são tantas as composições, que no final é possível reciclar, mas não para o que o mercado quer, que é para tornar a produzir fio para voltar a fazer roupa. Reciclar em grande escala o vestuário pós-consumo é um problema que está neste momento a surgir e é uma grande oportunidade de negócio, que estamos a ver para um futuro a muito curto prazo.
Já existe no mercado a tecnologia necessária para a reciclagem do vestuário pós-consumo?
Miguel Silva – Neste momento, as marcas estão a estudar a máquina mais adequada para fazer a reciclagem, porque ainda não é eficaz ao ponto de acharmos que está na hora de a adquirir. Ainda não está da forma que achamos que deve estar para fazermos o aproveitamento que queremos no final.
Hoje, no sector da reciclagem, quais são os desafios que se colocam?
Miguel Silva – Neste momento, o grande desafio é o pós-consumo, porque menos de 1% da roupa é aproveitada para tornar a fazer vestuário. Só que isso obriga a muito know-how, a muitos estudos e obriga ao eco-design, porque não se pode reciclar a moda tal e qual como ela está. Há 30 anos já fizemos muito pós-consumo, mas na altura não havia tantas fibras. Importávamos muitos contentores da Holanda e da Inglaterra, separávamos por cores e aproveitávamos o pós-consumo. Para nós não é novidade. Só que na altura não havia os manipulados que há hoje, não havia as composições que há hoje. Isso foi abandonado e, neste momento, está outra vez em cima da mesa – é o negócio do futuro.
Na sua perspetiva, quando seria exequível isso acontecer?
Miguel Silva – A Comissão Europeia vai obrigar, penso que a partir de 2025, as empresas têxteis a incluir material pós-consumo nas peças de vestuário. Por isso, penso que entre 2025 e 2030 vai ser uma realidade estar a produzir reciclados pós-consumo em grande escala para vestuário.
Consegue descortinar novos segmentos ou novos sectores que possam utilizar esses reciclados de pós-consumo?
Miguel Silva – Têm que ser estudados materiais para a indústria automóvel ou para a construção, que são mercados que já consomem e que podem consumir em grande escala, porque estamos a falar em muitos milhões de toneladas de pós-consumo.
Como está a correr o ano para a Sasia?
Miguel Silva – Este primeiro semestre foi bom a nível de vendas, mas neste momento já se nota uma grande quebra a nível de encomendas por parte dos clientes, porque os preços não param de aumentar – são as matérias-primas, são os transportes, são as energias, o gás, … – e não é possível repercutir isso no preço final do produto final, porque se formos repercutir no preço todas essas alíneas, fica impraticável para o consumidor. Por isso, neste momento, já se começa a notar uma quebra nas vendas.
Foi já obrigado a aumentar os preços?
Miguel Silva – No último ano, tivemos alguns aumentos de 100%. Antes da guerra, toda a gente ainda trabalhava razoavelmente bem. A guerra agravou ainda mais os custos dos transportes, o petróleo aumentou, os custos ainda aumentaram mais. Isso tudo agravou muito e não se prevê, a curto prazo, melhorias.
Qual foi o volume de negócios da empresa em 2021?
Miguel Silva – Cinco milhões de euros, crescemos 20%. Temos crescido nos últimos anos.
Que expetativas tem para o corrente ano?
Miguel Silva – Este ano estava previsto também um crescimento, à volta de 20% a 30%. Agora com esta quebra a partir de julho, não sabemos. Há uma retração grande. Quando a inflação está como está, quando a alimentação sobe, que é a prioridade número 1, o resto – o vestuário, tudo o que seja necessidade secundária – fica para trás. E neste momento também temos os juros das casas a subir, que vai ser outro problema a muito curto prazo. Por isso, é normal que haja uma retração no mercado e nas pessoas com esses fatores todos: temos o covid, temos a guerra, temos os juros a subir, temos a alimentação a subir…. Acho que se está a formar uma tempestade perfeita.

Vive-se hoje o pior momento?
Libório Silva – Cada caso é um caso. Estabelecer comparações e dizer qual foi melhor ou qual foi pior… cada um sofreu no momento as circunstâncias. Como dizia o José Ortega y Gasset “o homem é o homem e as suas circunstâncias” e o mundo vive de circunstâncias.
Qual é o segredo da Sasia para ter crescido ao longo de 70 anos?
Miguel Silva – Acreditamos sempre no futuro e na reciclagem. Começámos com a reciclagem e continuamos a acreditar que é o presente e é o futuro. Não temos outra solução se quisermos todos fazer mais e melhor pelo meio ambiente.
Qual tem sido a sua prioridade enquanto gestor?
Miguel Silva – Procurar inovar, tentar estar sempre na linha da frente porque, na têxtil, se paramos, em pouco tempo somos ultrapassados. A inovação sempre foi o nosso motor, para nos diferenciarmos dos demais.
Que objetivos tem para o próximo ano?
Miguel Silva – Hoje em dia falar de objetivos é difícil, o mundo é tão dinâmico, muda tudo tão rápido. Estávamos numa pandemia, a pandemia deu mostras que ia terminar, começámos uma guerra… tudo isto mudou o panorama do negócio, a nível mundial. Depois surgiu a falta de transportes a nível mundial, depois o problema da energia, que é o que nos preocupa neste momento, porque tem de ser feita alguma coisa urgentemente pelas entidades competentes, porque senão a cadeia toda, têxtil e não só, vai acabar por parar, porque não tem possibilidade de pagar os custos energéticos que neste momento se apresentam.
Para a Sasia, em particular, representa um aumento de custos de que ordem?
Miguel Silva – Neste momento temos contrato, mas pelos aumentos que nos falam, são aumentos para quatro vezes mais.
Que soluções poderiam mitigar esses aumentos?
Miguel Silva – Montámos 600 painéis fotovoltaicos, que é a primeira de três fases – no final serão à volta de 1.500. Mas isso serve apenas de amortecedor, não vai resolver o problema da parte elétrica. Tem que haver algum subsídio à parte elétrica, porque não vejo nenhuma outra solução para continuarmos todos a fabricar com os custos energéticos que existem neste momento, porque não é possível incrementar o preço final com esses custos.
Por onde passará, a longo prazo, o futuro deste sector de atividade?
Miguel Silva – Penso que o futuro da reciclagem está no pós-consumo, vai ser aí que as grandes marcas se vão concentrar e o consumidor vai exigir, por causa da sustentabilidade, que as grandes marcas tenham consciência ambiental e que apostem no pós-consumo, porque a fast fashion não pode continuar como está, considerando que, por ano, 11 quilogramas de roupa de cada um de nós vai para aterro.
Enquanto fundador desta empresa familiar, o que significa trabalhar lado a lado com as duas gerações seguintes, o seu filho Miguel e a sua neta Mariana, e vê-las dar continuidade ao negócio?
Libório Silva – Tem um sentido único de felicidade, porque tem-se concretizado através dos tempos a continuação da firma. Tenho muito gosto em vir até cá todos os dias, trocarmos impressões e ouvir sobre a evolução do negócio. Sempre que possível converso, sou um contador de histórias e quando se conta uma história, conta-se a história da firma e a sua evolução através dos tempos.
Qual é a história que guarda com mais carinho destes 70 anos de atividade?
Libório Silva – Quando comecei a empresa tinha 18 anos, de maneira que houve uma evolução natural das coisas, os tempos eram completamente diferentes. Se eu lhe disser que naquele tempo quase não havia fibras sintéticas, só havia viscose e algodão, e só depois de já estarmos a trabalhar é que começaram a aparecer os poliésteres, os acrílicos, as poliamidas, foi uma evolução extraordinária. E eu fico feliz da vida por ver que essa evolução tem continuado e está no bom caminho.
Que olhar tem sobre o salto tecnológico que a empresa deu?
Libório Silva – Tem havido realmente um avanço tecnológico muito grande, uma substituição de máquinas que eram pouco evoluídas e eu fico encantado ao ver que a Sasia de hoje nada tem a ver com a Sasia de há 70 anos. Dá-me uma satisfação maior saber que a nossa empresa começou pequenina e, neste momento, está para além de muitas. Havia vários recuperadores de têxteis na altura e todos ficaram pelo caminho. Sinto-me satisfeito por ver que conseguimos chegar ao ponto que chegámos e hoje somos apontados, a nível europeu, como dos recicladores mais bem equipados.

E o que vê a Mariana na Sasia de hoje?
Mariana Silva – Inovação.
O que a fez tomar o caminho da empresa?
Mariana Silva – Cresci na têxtil, tanto do lado do meu pai como da minha mãe. Estudei direção comercial e marketing e acho que é um bom projeto para iniciar a minha carreira.
A sua geração trata a digitalização por tu. O que pode trazer de inovador para a Sasia?
Mariana Silva – Contribuir para o avanço digital da empresa e usar os meios digitais para divulgá-la mais enquanto marca. Na área comercial estou a conhecer os clientes. É ainda uma aprendizagem.
Que lição reteve já do seu pai e do seu avô?
Mariana Silva – Que sem trabalho não há sucesso.