Sob o tema “Digitalização na indústria têxtil – a transformação”, o debate promovido pela Lectra juntou na sexta-feira última, empresários e especialistas no Palácio da Bolsa, no Porto, para sensibilizar e perceber o estado do sector nesta área.
Embora em termos tecnológicos, as empresas do sector pareçam estar aptas a enfrentar o repto da digitalização, há desafios que ainda se impõem. A questão, apontou José Costa, administrador da Becri, é perceber «como se consegue aplicar a Indústria 4.0 em empresas tradicionalmente muito conservadoras, com empresários já grisalhos, e como se consegue mudar a mentalidade dos nossos colaboradores». E deu o exemplo do software de design em 3D da Lectra. «O 3D da Lectra vai ser o futuro e começa a ser falado com mais frequência. Nós até queremos dar esse passo, mas do outro lado temos de ter os clientes dispostos a isso», explicou o administrador da Becri, que produz vestuário exterior em private label.

Dentro da própria estrutura, há também desafios à implementação de mudanças. «O ponto principal é conseguir que as nossas estruturas acompanhem esta mudança de chip», explicou José Costa, adiantando que no caso da Becri «vai passar pela formação, para criar competências nas pessoas, e pela transformação. Felizmente tem havido abertura, apesar das resistências naturais».
A empresa de confeção está ainda a desenvolver um programa, juntamente com um parceiro, para o planeamento da produção. «O programa vai ter alguma inteligência artificial e vai dar algumas sugestões de como planear», revelou o administrador da Becri. «A ideia é o próprio sistema dar-nos inputs, um pré-planeamento», acrescentou.

Também na Valérius tem havido adaptações para acompanhar a digitalização do negócio. A empresa, por exemplo, criou uma equipa interna para se assegurar que os dados introduzidos digitalmente estão corretos. «Até agora tínhamos uma taxa de dados incorretos de 60%. Com dados incorretos, não há inteligência artificial», sublinhou o presidente da empresa, José Ferreira.
Assumindo que os compradores atuais das empresas começam já a ser os millennials, a Valérius tem ainda um novo projeto na área da customização industrial. «Estamos a fazer um projeto piloto com um cliente alemão, com 180 lojas. Eles têm consultores de imagem, os clientes vão lá e fazem alterações nas peças à medida e os dados são enviados diretamente para a fábrica», explicou o empresário, acrescentando que em apenas duas semanas a peça é feita e enviada diretamente para o cliente final. «Estamos a fazer 80 peças dessas por dia», adiantou o presidente da Valérius.
Tendências na digitalização
A personalização de produtos, de resto, acredita Rodrigo Siza Vieira, «parece-me que será uma das grandes tendências».
Mas há outras, como adiantou Paulo Vaz, numa apresentação que versou sobre o passado e o presente da indústria têxtil e vestuário portuguesa na era da indústria 4.0. «A digitalização vai ter um impacto tão grande ou maior do que a globalização», começou por dizer o diretor-geral da ATP – Associação Têxtil e Vestuário de Portugal. Apesar de acreditar que a tecnologia não é o problema do sector nesta matéria, «há uma coisa que sei e que me preocupa, e preocupa-me sobretudo por parecer preocupar muito pouco quem devia estar preocupado: um atraso significativo das empresas do sector sobre o impacto da economia digital no seu todo», afirmou Paulo Vaz.

O problema, referiu, tem a ver com a mudança da mentalidade do consumidor, nomeadamente os millennials, que em breve irão dominar as decisões de compra, tanto enquanto consumidores finais, como enquanto responsáveis de compras nas empresas. «Os millennials são instáveis, evasivos, voláteis, infiéis, superficiais, pouco substanciais, incapazes de um relacionamento estável na lógica do negócio, procuram experiências, não dão importância a ter património – não querem ter carro, não querem ter casas… E isto reflete-se em tudo em que tem a ver com a forma como vivem e consomem. E mais importante: ao contrário do passado, hoje os millennials são iguais em toda a parte», explicou o diretor-geral da ATP.
«Esta geração grisalha provavelmente não está a conseguir compreender esta realidade, tal como custou a perceber que o mundo estava a mudar no início do século, com a globalização. É importante que olhemos para a digitalização com os mesmos olhos que devíamos ter tido para a globalização», realçou Paulo Vaz.

Aliás, sublinhou, por seu lado, João Oliveira, coordenador do Citeve para a transformação digital e indústria 4.0 – uma área autonomizada recentemente pelo centro tecnológico –, «estamos numa fase em que a economia digital já é a economia. A economia já é naturalmente digital».
João Oliveira reconheceu que a indústria têxtil e vestuário, tal como outras, tem trabalhado na indústria 4.0 há muitos anos, nomeadamente na aquisição de tecnologia, «mas a indústria 4.0 não é só isso» e , com ela, tem havido inclusivamente a mudança de modelos de negócio. «Se o José Neves, da Farfetch, vos tivesse falado da ideia dele há 10 anos atrás, vocês não acreditariam que seria possível», exemplificou.
Importante é também perceber que «a indústria 4.0 terá traduções diferentes em diferentes empresas, diferentes clusters, diferentes modelos de negócio», admitiu o coordenador do Citeve, que incentivou as empresas a experimentarem e a participarem nesta nova revolução industrial. «Há muitas dúvidas se a tecnologia vai funcionar. Devemos estar disponíveis para dispensar uma máquina para perceber se funciona, o que permite fazer e depois escalar para uma solução maior», afirmou João Oliveira. «Estas tecnologias vão ter impacto na organização, nos funcionários. Não é quem está cá em cima que sabe o que está cá em baixo. Envolver toda a gente, pelo menos aqueles que identificamos que vão ser impactados, é fundamental. Caso contrário, as resistências aparecem», assegurou.
