Empresas têm de se preparar para o Brexit

Na discussão das possibilidades que a saída do Reino Unido pode significar para a economia e para os negócios nacionais da fileira moda, sobressaíram muitas dúvidas e apenas uma certeza: as empresas portuguesas têm de se informar e estar preparadas para todos os cenários.

João Costa, Alice Rodrigues, Patrícia Gonçalves, Manuel Teixeira e João Maia

A conclusão saiu do seminário “Brexit: oportunidades e desafios para a fileira moda”, promovido pela Aicep hoje, no auditório da AEP – Associação Empresarial de Portugal.

A realidade é que, nesta altura, são mais as dúvidas do que as certezas, até porque, lembrou João Vallera, que entre 2010 e 2016 foi o embaixador português no Reino Unido e é atualmente coordenador da task force para o Brexit do Ministério dos Negócios Estrangeiros, «estamos a lidar com uma situação inédita na União Europeia».

O que sabemos hoje

Com o voto no “sim” no referendo a 23 de junho de 2016 e após Theresa May assumir a liderança em julho desse mesmo ano, o governo britânico mostrou-se irredutível em cumprir a vontade do povo e traçou as chamadas “linhas vermelhas”, citadas por João Vallera: o Reino Unido deixaria de respeitar a livre circulação de pessoas; deixaria de contribuir, salvo numa base pontual e residual, para o orçamento da União Europeia; subtrair-se-ia à jurisdição do Tribunal de Justiça Europeu; não seria um recetor passivo da regulamentação comunitária, reservando-se o direito de divergir e se afastar do ecossistema normativo da UE; assumiria uma política comercial independente, celebrando acordos próprios com terceiros países. Uma linha que apontava para uma saída “dura” da União Europeia, «que passaria mais por um acordo de comércio livre e não tanto por uma situação como a que existe com a Noruega e a Suíça», apontou João Vallera.

Alice Rodrigues, Pedro Patrício, Rui Boavista Marques, Marta Coelho e João Vallera

Para já, contudo, o acordo de saída ainda está longe e, «embora sob o signo de que nada está acordado até tudo ficar acordado», há já um entendimento em várias matérias, «entre elas três da maior importância: a continuidade dos direitos adquiridos pelos cidadãos da União Europeia a residir no Reino Unido e vice-versa, que era a nossa principal prioridade nesta fase; os arranjos financeiros; e a aceitação de um backstop, que traduzo como garantia de último recurso, no que respeita ao problema irlandês», enumerou o coordenador da task force para o Brexit.

O problema das Irlandas – cujo acordo de paz, conhecido por “Acordo da Sexta-feira Santa”, que estabelece um plano para a governação autónoma da Irlanda do Norte, impede a criação de fronteiras entre os dois territórios irlandeses – é, de resto, uma das dificuldades que o governo britânico tem atualmente de ultrapassar na negociação do Brexit.

«Gostaria de dizer que sabemos tudo o que vai acontecer, mas não estamos lá ainda», confessou João Vallera, que assumiu que, neste momento, «estamos numa fase crucial da negociação» e que há passos que têm de ser tomados rapidamente, uma vez que o Parlamento Europeu será dissolvido em março e uma das obrigações é que o acordo seja ratificado pelo mesmo. «Se acontecer uma situação em que não haja acordo ou o acordo não seja ratificado, aí podemos dar asas à nossa imaginação. Tudo pode acontecer», desde a queda do governo britânico ao prolongamento do período de transição, que termina em dezembro de 2020, passando por uma saída sem acordo a 30 de março ou até um segundo referendo, afirmou o coordenador da task force para o Brexit.

Rui Boavista Marques

Para já, contudo, tudo continua na mesma e, segundo Rui Boavista Marques, delegado da Aicep em Londres, «as exportações portuguesas para o Reino Unido têm aumentado», apesar deste ano se sentir um abrandamento e alguma estagnação. Ainda assim, o número de empresas exportadoras para o Reino Unido tem vindo a crescer, superando as 2.880 em 2017. «O Brexit ainda não aconteceu e, portanto, estamos no início de um processo e de um processo que vai ser longo», destacou Rui Boavista Marques, que, no entanto, sente no mercado «uma sensação de urgência. Há uma enorme ansiedade sobre procedimentos aduaneiros por parte de importadores», referiu.

Desde o referendo, a economia britânica foi afetada negativamente, tornando-se na que tem um crescimento mais lento entre os países do G7 e prevendo-se um menor crescimento e uma maior inflação que a Zona Euro em 2018 e 2019, apesar de, pelo lado positivo, estar a ser alvo de fortes investimentos estrangeiros, nomeadamente americanos e asiáticos.

Em termos do impacto do Brexit na economia portuguesa, o delegado da Aicep em Londres cita dados da Bloomberg que mostram que «estamos no grupo de menor impacto [-0,1%]».

Até à efetivação do Brexit é, por isso, «importante continuar a ganhar quota de mercado e subir na cadeia de valor, continuar a monitorizar as tendências do canal de distribuição e, se isto der mais para o torto, estar atentos às tendências de deslocalização», resumiu Rui Boavista Marques.

Possibilidades em cima da mesa

«Enquanto o Reino Unido não sair, aplicam-se as regras do mercado interno», começou por sublinhar Marta Coelho, da alfândega do Aeroporto do Porto, que trouxe ao seminário as várias opções para o pós-Brexit.

Marta Coelho

«Pode não haver acordo e o Reino Unido passa a ser tratado como um país terceiro», como já acontece com os EUA ou a China, por exemplo, ficando a circulação de pessoas e bens sujeitas às mesmas regras, ou seja, com pagamento de direitos alfandegários.

Uma segunda possibilidade é um acordo comercial, que pode ter diferentes modalidades. Pode ser um acordo de união aduaneira, como existe com a Turquia mas, referiu Marta Coelho, «continuam a ter de ser cumpridas as formalidades aduaneiras» e «nem todos os sectores têm de estar incluídos». É possível ainda a formalização de um acordo de comércio livre, «com formalidades acrescidas de prova de origem» ou até um acordo de segurança e proteção, que dispensa apenas algumas formalidades.

«Isto não equivale à situação que temos atualmente», sublinhou a representante da Autoridade Tributária e Aduaneira. «Não há mercado interno e, por isso, as mercadorias têm sempre de ser apresentadas na alfândega, o que traz custos de tempo e dinheiro», acrescentou.

A perspetiva das associações

Segundo João Costa, vice-presidente da ATP – Associação Têxtil e Vestuário de Portugal, «estávamos convencidos que o melhor que podia acontecer era a integração do Reino Unido no espaço económico, como a Suíça, e o pior seria uma situação de união aduaneira. Mas já vimos que há um propósito mais severo por parte do Reino Unido».

Destacando que o mercado britânico representa, em termos anuais, cerca de 450 milhões de euros nas exportações da indústria têxtil e vestuário, o representante associativo assumiu que, por parte das empresas, há um clima de incerteza e alguma insegurança quanto ao futuro. «A opinião geral que me foi transmitida pelas empresas portuguesas é que, não havendo um acordo, muitos dos importadores não têm sequer possibilidade de continuar a sua atividade», referiu João Costa, lembrando que Portugal trabalha sobretudo com pequenos importadores que procuram a resposta rápida e flexível dos produtores nacionais. «O que era desejável era que as coisas continuassem a funcionar e mantivéssemos os cerca de 500 milhões de euros de exportações e até aumentássemos», apontou.

Manuel Teixeira

Manuel Teixeira, CEO do CENIT, que esteve em representação da ANIVEC – Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confecção, afirmou que, no vestuário, o Reino Unido tem perdido importância, algo que tem vindo a acontecer já nos últimos anos, mesmo antes do Brexit. «O Reino Unido representa 9% das exportações portuguesas de vestuário», o equivalente a 280 milhões de euros em 2017, apontou.

Entre os fatores que deverão marcar o futuro da relação entre o mercado britânico e o português, Manuel Teixeira destacou a política monetária do Reino Unido, mais próxima do dólar americano, e também a perda de quota das empresas nacionais face a outros players da União Europeia, algo que se justifica «pela entrada de marcas de outros países no Reino Unido».

Para combater, de certa forma, esta perda de protagonismo luso no mercado britânico, «tomamos a iniciativa, para além do apoio em feiras no mercado britânico, de dar destaque à categoria de vestuário de criança com marca própria e, por outro lado, promover um grupo de trabalho para desenvolver uma agenda e contactos na área do vestuário de trabalho, que tem conseguido abrir portas num mercado que estava muito fechado e que é um mercado com enorme potencial. Gostaríamos de alargar esta iniciativa ao resto do vestuário, nomeadamente no private label», referiu. Além disso, os contactos efetuados pelo CENIT e pela ANIVEC no mercado levantaram algumas oportunidades, nomeadamente na área logística. «Algumas das redes de retalho inglesas, que vendem no Reino Unido mas também para Europa e para o resto do mundo, admitem a possibilidade de ter a logística sediada aqui em Portugal», desvendou Manuel Teixeira.

Do lado do calçado, João Maia, diretor-geral da APICCAPS – Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos, apontou que a situação atual do Brexit «é um problema de incerteza e risco» e assumiu que «não sei se quero uma união aduaneira com o Reino Unido». Como justificação, João Maia mostrou os números que mostram que, apesar de praticamente não ter produção de calçado, o Reino Unido é o oitavo exportador mundial de calçado, fruto de se ter transformado numa plataforma logística que importa artigos dos países asiáticos e os distribui pela União Europeia. «Para termos um acordo de comércio com o Reino Unido temos de perceber este fenómeno. A questão é qual é o melhor cenário para Portugal, e para a UE, após o Brexit. Neste cenário, se calhar somos nós os prejudicados», afirmou.

Mais questões e uma certeza

Com a abertura da sessão a questões da plateia, tornou-se evidente que são mais as perguntas do que as certezas existentes em relação ao Brexit, desde a aplicação das normas, como a marcação CE no vestuário de trabalho, numa questão levantada por Maria José Machado, da Axfilia, até às mudanças na situação de venda de tecidos para o Reino Unido mas que são enviados para países terceiros para transformação ou ainda a possibilidade de, na eventualidade de um acordo de comércio livre entre o Reino Unido e os EUA, isso poder beneficiar Portugal.

«As empresas têm de estar preparadas para o pior. Se não acontecer, fica tudo na mesma. É olhar para os vários cenários e tentar estar preparado», sublinhou Alice Rodrigues, diretora de serviços do comércio internacional da Direção-Geral das Atividades Económicas.

Paulo Nunes de Almeida

Uma ideia reiterada igualmente por Patrícia Gonçalves, diretora de economia e relações internacionais da CIP – Confederação Empresarial de Portugal. «O nosso objetivo não é criar pânico. É apenas alertar. Há muitas empresas que não acreditam que vai acontecer o Brexit e há muita probabilidade de acontecer», afirmou. «Têm sido feitos muitos estudos em vários países da UE e todos têm uma conclusão em comum: quanto mais afastado ficar o Reino Unido, mais negativos vão ser os impactos», acrescentou, adiantando que um estudo realizado pela Ernst & Young com a Augusto Mateus & Associados, que será apresentado no dia 31 de outubro, prevê uma redução de 26% das exportações portuguesas para o Reino Unido caso não haja acordo.

Qualquer que seja o caminho no pós-Brexit, Paulo Nunes de Almeida, presidente da AEP – Associação Empresarial de Portugal, que ficou responsável pelo encerramento do seminário, tem, contudo, uma certeza. «As empresas e os empresários portugueses conseguem sempre adaptar-se», concluiu.