Daniel Agis, consultor e especialista em comunicação e marketing, trouxe uma visão holística do negócio da moda, destacando «a importância de conectar todas as fases da cadeia de valor, mesmo aquelas que se pensa que não interferem diretamente na atividade de cada um dos componentes da fileira têxtil».
A começar pela comunicação, que está no epicentro das mudanças da sociedade, considera. «Temos que pensar que todos os principais instrumentos que são referência hoje, tanto em hardware como software, foram lançados no período de cinco anos e que se consolidaram num período de plena crise, quando as pessoas sentiam uma maior necessidade de dialogar, inclusive havia a necessidade de protestar, ver, posicionar-se. É muito interessante ver que, entre 2005 e 2012, a sociedade muda e a sociedade muda porque muda a forma como as pessoas interagem entre elas», apontou Daniel Agis.
Esta revolução na forma de comunicar e de partilhar «impulsionou uma sociedade ainda mais niilista, questionadora de qualquer dogma, com um espírito crítico em relação a tudo e também perante o papel social das marcas e das empresas», acrescentou.
Ética, inclusão e sustentabilidade passam a ser termos obrigatórios para as empresas por pressão da sociedade, inicialmente dos millennials – a geração de jovens nascidos entre os anos 80 e meados da década de 90. «As empresas abraçaram esta postura, pois afinal de contas os millennials geram dois terços do crescimento do mercado em qualquer sector», salientou Daniel Agis, mas, graças à digitalização, «acabou por contaminar todas as restantes faixas etárias».
Vivemos atualmente numa era de «micro-causas», às quais as marcas se associam e centram os seus discursos, «algumas de forma honesta e algumas praticando aquilo que se chama o greenwashing», afirmou o especialista em marketing. A Gucci, por exemplo, lançou a coleção de homem para o outono-inverno 2020/2021 com uma mensagem que condena a masculinidade tóxica e anuncia o fim do patriarcado. «O que está a fazer a Gucci é assumir uma posição ativista e de apoio à causa da teoria Queer, que indica que as identidades e orientações sexuais não estão inscritas na natureza biológica humana, mas são o resultado de uma construção social», explicou Daniel Agis, sublinhando que «uma marca pode distinguir-se muito mais através de uma posição de rutura dentro deste tipo do que com qualquer design». Posições semelhantes têm sido assumidas pela Levi’s, Polo Ralph Lauren e Victoria’s Secret.
Os negócios não estão desligados dos comportamentos sociais. Aliás, tinha já advertido o especialista em marketing, «a sociedade é o centro de tudo que traz uma transição naquilo que é o consumo. A sociedade transforma os hábitos de consumo, o consumo provoca mudanças no retalho e o retalho tem obviamente um impacto decisivo na forma como depois a indústria, no seu global, se desenvolve».
Ascensão omnicanal
Neste contexto, o retalho está igualmente em evolução e «passámos rapidamente de estratégias multicanal que eram óbvias – as marcas a quererem fazer negócios via online para além dos formatos físicos – para estratégias ainda incompletas de omnicanalidade, que significa a completa integração dos canais físicos e online», afirmou Daniel Agis.
O covid-19 levou a um aumento do peso do digital e acelerou uma transformação que estava já a fazer-se sentir junto dos retalhistas, sobretudo tendo em conta que, num curto espaço de tempo, o canal offline terá perdido 30% de quota de mercado, avançou o especialista. «Não só têm que investir no digital para poderem recuperar o que estão a perder no comércio físico, como também têm que pensar em como reconverter os seus espaços físicos, pois há profundas mudanças nos hábitos dos consumidores», acrescentou.

O «apocalypse retail», como lhe chamou, chegou à Europa, depois de ter já feito estragos nos EUA, com os grandes armazéns britânicos, por exemplo, a serem absorvidos por retalhistas provenientes do comércio eletrónico. Tudo isso colocou um travão no desenvolvimento do omnicanal, «porque o retalho físico está em crise», ficando tudo concentrado no digital, o que, de acordo com Daniel Agis, fez com que «a indústria tenha regredido, em termos globais, cinco ou seis anos, quer ao nível dos investimentos tecnológicos, quer ao nível dos investimentos comerciais e de sustentabilidade».
O futuro é ainda incerto, embora pareçam estar a «acelerar as transformações e a implementação tecnológica da etapa pré-covid», referiu. O comércio eletrónico deverá ter vindo para ficar, mas não deve manter para já a quota de 25% que alcançou na Europa. «A abertura dos espaços físicos vai reequilibrar as coisas, mas o comércio online terá ganho uma quota importante», sustentou.
Ao nível do retalho físico, Daniel Agis está convicto que a crise do Covid-19 vai mudar para sempre o seu papel. «Acredito bastante na hibridação dos espaços, espaços de comércio feitos não só para vender mas para a componente de engagement», destacou. É ainda previsível que haja uma redução do número de pontos de venda. «Se antes tinha previsto que estaria em 20%, agora estamos a calcular que se pode perder 30% dos espaços comerciais que existem hoje», adiantou.
Impacto na indústria
Tudo isto afeta a indústria da moda ao longo de toda a cadeia de valor, a começar por uma produção de séries curtas para controlar os riscos e um time to market reduzido para metade para imprimir velocidade à substituição de séries tão curtas, assim como para combater as cópias por marcas de gama mais baixa. Nas gamas mais altas, a origem passou a ter uma maior importância, enquanto parte da história do produto. Há ainda «um aumento exponencial da concorrência devido ao peso crescente das plataformas online e das exigências éticas e ambientais, tanto as normativas como as ditadas pelos valores da sociedade», enumerou.
A moda, indicou Daniel Agis, «será realmente eco-friendly, criativa, científica, competitiva e, sobretudo, mainstream. Deixará de ser um produto de nicho para passar a ser mainstream» e, por isso, a indústria terá de ter isso em consideração. «A indústria não pode pensar no produto eco como simplesmente um produto facilmente gerador de uma receita muito maior e sim há que pensar num produto que não só seja sustentável como também seja competitivo do ponto de vista económico», elucidou.

Os processos criativos irão igualmente mudar, devendo dividir-se em três grandes eixos: os produtos de grande consumo, cujo design estará diretamente ligado à informação recolhida por big data, com pouca intervenção dos designers em termos de criatividade; os produtos de marcas que desenvolvem fortes narrativas temáticas, sociais e estéticas, onde o design apoia o posicionamento, ao nível de matérias-primas e inovação; e os produtos das marcas com uma alta componente artesanal e de customização. «Há investimentos de grandes marcas, como a Louis Vuitton, em abrir fábricas» em Itália e França para preservar este know-how artesanal, afiançou Daniel Agis, acrescentando que, neste caso, «o custo é um problema secundário e o produto tem que ter a origem europeia e tem que ter um determinado tipo de compromisso interessante».
Para os próximos 10 anos, os grandes temas para a indústria europeia passam, segundo o especialista em marketing, pela redução da pegada ambiental, a customização, a produção por encomenda, a introdução de novos materiais, o desenvolvimento de wearables e o aumento da rentabilidade da produção em pequena escala.
O papel da marca
No que se refere especificamente ao sistema moda português, Daniel Agis dividiu em quatro partes: marca sem indústria; marca com indústria; têxteis técnicos e customizados; e sistemas private label.
Em relação à primeira, «existe um grave problema, que é a falta de desenvolvimento fora das fronteiras. Existe uma hipertrofia no mercado nacional e é necessário induzir o desenvolvimento da marca a nível internacional», garantiu. «Inclusive, na minha ótica, grandes grupos como a Sonae ainda estão hipertrofiados, com excessiva presença nacional», exemplificou, destacando como exemplo mais positivo a Parfois, «que tem uma melhor performance internacional». É ainda necessário superar o défice da identidade e a comunicação é de muito baixo perfil. «As marcas não fazem ainda uma diferença entre o que é marca e o que é insígnia. Estamos a ver marcas que têm preço de marca, uma postura de marca, mas depois têm todo um posicionamento na comunicação e identidade de insígnia low profile e isto faz com que, no momento em que querem cruzar fronteiras, não tenham possibilidade», justificou o especialista de marketing, que considera existir ainda problemas de posicionamento. «A omnicanalidade 2.0 será a base para a mudança no paradigma de expansão», referiu.

Sobre as marcas com indústria, Daniel Agis considera que a integração do negócio de marketing nas empresas industriais quando o negócio industrial é dominante tem gerado o subdesenvolvimento das marcas portuguesas. «As marcas portuguesas que normalmente pertencem a grupos industriais são marcas muito pequenas, subdesenvolvidas. Aqui aconselha-se um spin-off do negócio, separá-lo e a máxima profissionalização da gestão da marca» ou, pelo contrário, o abandono do negócio da marca para se concentrar no negócio da produção, assegurou.
A terceira vertente, dos têxteis técnicos e customizados, exige cooperação. «Mais do que cooperar de uma forma idílica é realmente começar a desenvolver projetos juntos, investir juntos em investigação partilhada e na conceção científica», mencionou.
Por último, nos sistemas de private label, a sustentabilidade será a palavra de ordem. «Mas atenção que a sustentabilidade tem que ser economicamente sustentável», reforçou Daniel Agis. A sustentabilidade deverá ainda ser integrada como argumento numa estratégia de comunicação do cluster, com uma forte presença nas redes sociais e com um storytelling diferenciador.
Citando o professor José Hermano Saraiva, que disse «nós nunca fomos muitos, mas enquanto soubemos ser todos, nós fomos sempre bastantes», Daniel Agis salientou que «esta indústria será mais forte se conseguir que todos mudem o chip, que todos consigam este elemento de união e cooperação».