«A pandemia é uma brincadeira comparada com os problemas que estamos a viver»

Apesar da fidelização dos clientes às coleções criativas que saem da empresa, a subida das faturas da eletricidade e do gás está a trazer desafios acrescidos à Somelos, com Paulo Melo a apelar a medidas governamentais concretas para apoiar a indústria têxtil.

Paulo Melo

O aumento dos custos, nomeadamente da energia, mas também das matérias-primas e dos transportes, está a impactar fortemente o sector e a pôr em causa a competitividade das empresas, acredita o presidente do conselho de administração da Somelos, que aponta para a necessidade urgente de medidas governamentais de apoio aos negócios.

Numa entrevista realizada na última edição da Première Vision, Paulo Melo salienta, contudo, que a estratégia única da empresa que lidera tem permitido superar os desafios, com os clientes a premiarem a qualidade e a criatividade das suas coleções, o que tem possibilitado à Somelos continuar a ser vista como uma referência e uma trendsetter na moda.

Que impacto está a ter na indústria têxtil o aumento dos preços da energia?

É dramático, porque exerce uma pressão muito forte – os preços quintuplicaram. É uma situação que começou já em julho do ano passado, em setembro/outubro voltou o incremento de preços e depois a guerra fez com que as coisas aumentassem de uma forma exponencial, que ninguém esperava. Não quer dizer que eu não tivesse consciência que a parte da energia iria sempre aumentar, mas não desta forma. Em toda a fileira, seja na fiação, na tecelagem ou nos acabamentos – a parte dos acabamentos, então, tem impacto de dois lados, do gás e da energia elétrica – são faturas mensais astronómicas. No fundo, hoje em dia, quase que trabalhamos e vendemos para pagar o gás e a eletricidade.

Que soluções alvitra para ultrapassar esta situação?

Temos que pensar em soluções para consumir menos energia, consumir menos gás, fazer tudo o que é possível, aquele trabalho de casa que todas as empresas têm que fazer, rapidamente e em força, para tentar mitigar ao máximo este impacto, esperando que as coisas acalmem e que voltem a uma certa normalidade. Voltar a uma situação como era no passado, não acredito, mas que venham para valores um pouco mais acessíveis, porque senão começa a pesar muito e pode causar, a nível industrial, muita mossa no sector têxtil português, e não só. Mas é um assunto geopolítico, são variáveis geopolíticas que as empresas, os empresários e o sector, francamente, não conseguem controlar. Acho que, para situações extraordinárias como esta, tem que haver medidas extraordinárias e essas medidas demoram muito tempo a acontecer, o que pode causar dificuldades às empresas, que podem deixar de ser competitivas ou podem ter outro nível de problemas que no passado não tinham, porque era uma variável que estava, não digo controlada, mas que era previsível. Hoje em dia, isso não acontece. Já no ano passado tive uma dificuldade enorme em fazer os orçamentos para 2022. Até escorregamos no tempo, até à primeira semana de dezembro para a produção de orçamentos para este ano, porque não sabíamos que preço médio é que íamos pôr no gás e na energia e não havia nenhuma guerra. Agora vamos chegar a outubro/novembro com o mesmo dilema: que preço é que a gente põe na energia? E depois, é a indústria é que está a pagar isto, os consumidores finais não estão a pagar o suporte de energia. Já disse, meio a brincar, que se o cidadão comum estivesse a pagar o aumento da energia que as empresas estão a pagar, já tinha acontecido uma guerra civil em Portugal. Porque ninguém conseguiria pagar estas faturas de energia. A indústria é que está a aguentar isto tudo neste momento.

Que medidas são, então, prementes?

As medidas têm que ser de apoio à tesouraria das empresas ou têm que ser apoios mais diretos, de forma a que as empresas consigam mitigar o impacto. Se for uma empresa de acabamentos, na energia estamos a falar de aumentos de 50% a 70%. Isto é incomportável, porque o consumidor final não vai pagar, vai haver uma quebra de consumo mais à frente, que se começa já a sentir, e a quebra de consumo pode originar depois uma quebra de encomendas por arrasto. Ou aguentamos a indústria, e criamos algumas medidas de proteção à indústria ou, senão, quando for tarde de mais, as que fecharem não vão reabrir depois, isso tenho a certeza absoluta. Por exemplo, em Itália, o Governo está a pagar 25% das faturas a cada empresa. É uma solução. Em Portugal não está a ser tanto. Deram aqueles 400 mil euros como teto máximo e só agora – saiu tarde para o segundo trimestre e não é nada, é uma gota no oceano. Acho que em Portugal, quando as coisas são muito pensadas ou repensadas, demoram muito, surgem tardiamente ou não acontecem. Ou então estão à espera que as empresas aguentem e, muito sinceramente, se isto continuar a este ritmo, as empresas não vão aguentar. Vivíamos muito melhor com o covid do que com estas situações, porque com o covid tínhamos os mercados fechados, mas tínhamos todas as variáveis estáveis. Em abril do ano passado, começaram a abrir os mercados, começaram os aumentos nos transportes, começaram os aumentos das matérias-primas, o aumento dos químicos e depois a questão mais tarde do aumento da energia. Portanto, hoje em dia, há uma quantidade muito grande de variáveis com aumentos exponenciais. Acho que a maior parte do mercado português do sector têxtil não tem hipótese nenhuma de repercutir os aumentos no preço dos produtos. Portanto, é uma situação, muito complicada, e acho que quem está fora do sector não se apercebeu ainda da situação, que considero que vai continuar a ser dramática.

O sector têxtil fez o papel que o país precisava nos últimos 10 anos. Aumentou a quota de exportação, os empresários tiveram essa responsabilidade e fizeram esse trabalho. Agora, quando há situações com variáveis que não conseguem controlar, o Estado deveria estar muito mais atento, muito mais alerta e antecipar a ajuda. Às vezes pecamos pelo tardamento. Tal como nós, com os nossos clientes, temos que antecipar as expectativas, o Estado, na sua função de proteção não só das empresas, mas das exportações e do próprio país, deveria precaver isso, porque quando for a agir, pode ser tarde demais.

Numa perspetiva mais positiva, há quem fale do nearshoring e do regresso de clientes aos mercados de proximidade. A Somelos tem sentido algumas oportunidades nesse âmbito?

Sim, temos sentido a tendência do nearshoring. A Ásia está muito fechada e enquanto estiver assim, os aprovisionamentos vão continuar a ser feitos nos mercados de proximidade e aí temos uma grande vantagem competitiva, assim como os turcos. Agora, não podemos é deixar perder esta vantagem competitiva. Se a perdermos, acabou. Isto é um comboio e ou agarramos o comboio e vamos, ou senão passou, e pode não voltar a passar. O momento que vivemos – a inflação, mais o acréscimo dos custos – vai atirar as coisas para um patamar muitíssimo complicado e difícil, que está a sentir-se. E só não entende quem não quer, porque não é preciso estar no meio do sector têxtil para perceber. As pessoas com certeza não querem ouvir, não querem sentir e estão a empurrar com a barriga a ver até onde é que isto vai dar, mas às vezes pode ser tarde demais quando acordarem, porque é uma situação muito complicada.

Como tem a empresa vivido este período?

Apesar das dificuldades encontradas no mercado, a Somelos tem ultrapassado os obstáculos e, hoje em dia, fruto da nossa estratégia, temos conseguido que os clientes nos reconheçam. Agora, claro que não estamos contentes com estas dificuldades que o mundo hoje atravessa, que são desafios muitíssimo grandes. Entristece-me dizer isto, mas é uma realidade: a pandemia é uma brincadeira comparada com os problemas que estamos a viver hoje em dia.

Quais são os pilares da estratégia da Somelos atualmente?

O negócio da Somelos, acho eu, está cada vez mais claro. É difícil explicar a estratégia da Somelos no têxtil português, porque é única e ímpar. Mas hoje em dia, por aquilo que demonstramos, acho que a qualidade da nossa estratégia, que engloba tudo, desde o produto ao serviço, está mais demonstrada, mais clara e mais exposta. Por isso, o caminho do Grupo Somelos é francamente positivo pela frente, apesar destas adversidades. É uma estratégia que não é nova, trabalhamos com muitas centenas de milhares de clientes, estamos preparados, sempre operámos numa média-pequena escala e num permanente apoio e suporte em coleções muito bem elaboradas, com uma forte componente moda, com muita criatividade e inovação. Vendemos aquilo que criamos e isso é ímpar em Portugal. Somos um trendsetter da moda e, por isso, somos muito apelativos para os clientes. Não há dúvida que vamos vingar se o mundo continuar aberto, se a moda continuar – nós vendemos moda, não parámos com a pandemia, continuámos a fazê-lo e, hoje em dia, com o mercado mais aberto, vamos continuar a fazer moda. É isso que sabemos fazer e fazemos muito bem.